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“O clima do Luxemburgo é para os javalis e para os luxemburgueses”

“O clima do Luxemburgo é para os javalis e para os luxemburgueses”

“O clima do Luxemburgo é para os javalis e para os luxemburgueses”
Entrevista com artista plástico Wil Lofy

“O clima do Luxemburgo é para os javalis e para os luxemburgueses”


13.10.2016

Aos 79 anos, Wil Lofy é autor de esculturas que todos conhecemos, sem saber quem é o seu criador, como o Hämmelsmarsch, na Grand-Rue (Roude Pëtz), ou a Maus Ketty, em Mondorf. Foto: José Luís Correia/Milda Palilionyte

É um dos artistas mais conceituados e populares do Luxemburgo, e um dos mais irreverentes. Aos 79 anos, Wil Lofy é autor de esculturas que todos conhecemos, sem saber quem é o seu criador. São monumentos baseados no folclore ou na história do país, como a fonte do Hämmelsmarsch, na Grand-Rue, ou a Maus Ketty, em Mondorf.

Uma entrevista de José Luís Correia e Milda Palilionyte (12 de outubro de 2016)

É um dos artistas mais conceituados e populares do Luxemburgo, e um dos mais irreverentes. Aos 79 anos, Wil Lofy é autor de esculturas que todos conhecemos, sem saber quem é o seu criador. São monumentos baseados no folclore ou na história do país, como a fonte do Hämmelsmarsch, na Grand-Rue (Roude Pëtz), ou a Maus Ketty, em Mondorf.

A casa de Wil Lofy no Grund é uma autêntica caverna de Ali Babá: há esculturas por todo o lado, berloques e bibelots, desenhos, rascunhos, papéis nas mesas, no chão, no sofá, um caos alegre de artista. Toca uma música sul-americana em fundo. O artista começa por avisar-nos, não gosta de jornalistas nem de entrevistas. Porque aceitou receber-nos? Encolhe os ombros e manda-nos sentar onde conseguirmos.

Visita guiada pela casa de Wil Lofy no Grund:

Contacto: Trabalha como artista plástico há mais de 50 anos. Trabalhou com madeira, mármore, betão, bronze e mais recentemente com ossos de baleia. Que matéria prefere?

Wil Lofy : Prefiro a terra, a argila. A pedra é dura, batemos que nem loucos e os resultados são poucos. Com a terra podemos destruir e reconstruir. Os ossos de baleia é algo que descobri na América Latina.

Nasceu numa família operária, como é que decidiu ser artista e como é que os seus pais reagiram quando lhes disse o que queria fazer?

Não lhes disse nada. Os meus pais queriam comprar uma casa, precisavam de alguém que os ajudasse a pagar e esse alguém era eu. Trabalhei na Arbed, depois de sair do liceu. A empresa tinha criado um novo serviço de qualidade, a metalografia. Trabalhei ali um ano e meio, quase dois. Tive aulas de físico-química, tive que aprender o diagrama carbono-aço e essas coisas… Mas como não era isso que queria fazer, um dia saí de casa e só telefonei quando já estava em Itália (risos). Fui para a Arbed porque já o meu pai trabalhava lá, na trefilagem, em Esch. Era um trabalho muito duro. Aquelas fábricas eram enormes... A minha mãe cuidava da casa, era assim naquela época.

Eram os dois luxemburgueses?

A minha mãe era luxemburguesa e o meu pai… não tinha nacionalidade, era cigano. Tornou-se luxemburguês depois, sim. Eu também não tive nacionalidade até aos 19 anos. Tive que fazer o serviço militar para me tornar luxemburguês. É engraçado que possamos nascer sem nacionalidade... (enrola um cigarro)

Em Itália, trabalhou no Sesto Fiorentino, onde se formam os melhores escultores...

Era preciso fazer um pouco disto, um pouco daquilo, tinha de sobreviver, não tinha dinheiro. Mas tinha muito charme (risos). Sim, trabalhei em Sesto Fiorentino, perto de Florença, há ali muitos oleiros. Fiz muito disso… Também havia ali uma escola de ceramistas, foi lá que descobri a argila. A argila serve depois para o bronze e para o gesso, porque, como disse, a argila é fácil de fazer e desfazer.

A casa de Wil Lofy no Grund é uma autêntica caverna de Ali Babá com esculturas e obras espalhadas um pouco por todo o lado
Fotos: J.L. Correia/ Milda Palilionyte

Foi também em Itália que começou a esculpir a figura humana?

Isso foi em Paris, na Academia de Belas Artes.

Em jovem tinha começado pelo desenho?

Sim, fiz um pouco de arte gráfica. Estive três anos na escola em Itália para aprender desenho e depois mais quatro a fazer escultura. E foi lá que comecei a trabalhar para casas de moda. Em Florença, para o Scarabocchio [loja de roupa], para o Pucci [estilista italiano, 1914-1992]. Eu fazia os desenhos para os sacos em pele. Depois fui para Paris, onde desenhava as imagens dos lenços da Lanvin-Castillo.

Trabalhou com o Pucci?

Não trabalhava com o Pucci, mas para o Pucci. Ele enviava os sacos em pele para a empresa onde eu trabalhava e nós criávamos um desenho, para a estampagem no saco. Por exemplo, ele queria um desenho do Ponte Vecchio (famosa ponte de Florença) ou algo a ver com o tema primavera-verão ou outono-inverno e nós fazíamos. Eram encomendas. A mesma coisa para o Scarabocchio, eu desenhava motivos em tecidos de 1,80m ou em lenços. Cavalos ou carrocéis eram motivos muito populares na altura. Eram peças únicas, feitas à mão.

Quando começou a receber encomendas no Luxemburgo?

Foi depois de ganhar [em 1981/1982] o concurso para fazer a fonte do ‘Roude Pëtz’ (largo dito do ‘poço vermelho’, na Grand-Rue, na capital, onde entre 1740 e 1867 havia um poço em tijolo vermelho]. Esse concurso e essa fonte [o ’Hammelmarsch’, ver foto central] tornaram-me conhecido e comecei a ter mais encomendas.

É verdade que nessa fonte se autorretratou num acordeonista que tem o dedo médio levantado? Foi em sinal de protesto contra quem?

Autorretratei-me porque lhes perguntei se me faziam um monumento em minha honra e como disseram que não, fiz eu um para mim (risos). O dedo? Hum… (hesita um pouco, faz um silêncio).

Foi em protesto contra Lydie Polfer, burgomestre da cidade do Luxemburgo na altura?

Não falemos de nomes, essas coisas zangam… Foi assim: ganhei o concurso e o combinado foi que me pagariam um terço da verba de imediato, um terço no momento da fundição da escultura e um terço na entrega da obra. Mas durante um ano não me pagaram e eu não fiz nada. Não é possível ter pessoas a trabalhar numa escultura e não poder pagá-las. Fiquei nervoso e decidi fazer a escultura assim.

Fotos: J.L. Correia/ Milda Palilionyte

Depois disso ficou famoso e fez a Maus Ketty em Mondorf, a Botterfra em Ettelbruck, a fonte de Baco em Remich…

Sim, mas da cidade do Luxemburgo nunca mais tive encomendas. Depois trabalhei em França, fiz esculturas e trabalhos para piscinas, liceus, porque em França há a lei do ‘1% artístico’, ou seja, os edifícios públicos têm de investir 1% do seu orçamento com encomendas a artistas ou artesãos locais, estucadores, mosaístas, escultores. Penso que é uma boa ideia que deveria ser introduzida no Luxemburgo, porque isso daria trabalho a muita gente.

Que olhar tem sobre a arte e os artistas luxemburgueses de hoje, há algum que se destaque para si?

O Moritz Ney faz coisas giras ou o jovem [Fernand] Bertemes, os dois têm um excelente nível.

O que pensa da ’Melusina’ do Serge Ecker, que veio aqui para o Grund?

Não posso dizer nada porque ainda não a vi. É que estou um pouco zangado. O [Claude] Frisoni [diretor da Abadia de Neumünster, de 2002 a 2013], que eu conheço bem porque a primeira vez que ele veio para o Luxemburgo deu-me boleia, eu já não tinha dinheiro, estava a pé, tinham-me apanhado com seis toneladas de marijuana nas Caraíbas e expulsaram-me... Enfim, eu e ele já nos conhecemos há muito tempo. Um dia, ele vem, eu mostro-lhe uns desenhos da Melusina e digo-lhe: Além [no Grund] ficava bem, não achas? Dou-lhe o dossiê com os meus desenhos, ele diz-me que o [Xavier] Bettel [burgomestre da cidade do Luxemburgo de 2011 a 2013] achou aquilo extraordinário e que vai fazer um concurso público. E eu disse-lhe: Então façam o vosso concurso, não quero saber…

Roubaram-lhe a ideia?

Sim, é assim, pronto, bof... A humanidade é muito jovem, o Darwin andava à procura do elo perdido. Somos nós [baixinho], somos nós o elo perdido, somos burros que nem portas.

Concorda que seja o Serge Ecker a representar o Luxemburgo na Bienal de Veneza [decorre de 28 de maio a 27 de novembro]?

Tudo o que seja gasto em arte é melhor do que gastar na guerra. Se soubéssemos quanto custa um avião de caça e essas parvoíces, dava para alimentar várias gerações de artistas. Sou muito a favor de se gastar dinheiro na arte. Mas se me vêm falar de qualidade, bem, isso é outra coisa. Eu não sou crítico de arte, mas… Aliás, os críticos de arte são a pior espécie depois do sapo.

Porquê, acha que os críticos de arte são artistas falhados?

De um lado temos um boi e do outro um touro. Um tem tomates, o outro não.  Deve ser frustrante ser crítico de arte, ter percebido tudo e não conseguir fazer nada. É dramático.

Wil Lofy explica-nos que está a preparar um livro baseado em contos tradicionais e na história do Luxemburgo
Fotos: J.L. Correia/ Milda Palilionyte

Não tem boas relações com os críticos de arte?

Não os frequento.

Também é dos que pensa que não há verdadeiros críticos de arte no Luxemburgo?

Não há em lado nenhum! Até em Nova Iorque os críticos de arte são pagos pelas galerias.

O que pensa da transformação do Grund nos últimos 30 anos de um bairro popular num bairro mais virado para a arte?

O quê? Oh… Não é nada! (com um ar exasperado) Antes era um bairro com vida, havia um talho, uma padaria, uma, duas, três mercearias. Agora não há nada, fizeram disto um bairro morto. Querem fazer um bairro chique, mas é um bairro morto.

Frequenta os seus vizinhos, muitos deles portugueses, aqui no bairro?

Muito pouco. Mudam tão depressa que não tens tempo de os ver.

Tem 79 anos, a mensagem que quer transmitir como artista mudou ao longo da sua vida?

Eu sou mais mercenário do que artista. Vocês querem isto, eu faço. Depois pagam-me e eu compro a coisa mais preciso que há: tempo. Estar vacante, disponível. Posso ganhar o dinheiro que quero, mas o tempo… só se vive uma vez. O tempo é importante, o que fazes com o teu tempo. Há pessoas que perdem a vida para a ganhar. Antes, como toda a gente, tive que lutar para viver e sobreviver… e pagar os meus impostos (risos). Hoje, tenho dinheiro suficiente para viver, posso divertir-me.

Mas bom, agora preciso de 150 mil euros para ir buscar o meu veleiro que está no Peru e com o qual quero ir até ao Panamá. Como tenho que arranjar esse dinheiro estou a desenhar um ‘Renert’ (a raposa do conto infantil luxemburguês), que vou fazer em bronze e vender cada peça a 2.500 euros. Vendo cem raposas e, pronto, já posso ir buscar o meu barco. A glória é muito bonito, mas…

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Fotos: J.L. Correia/ Milda Palilionyte

Não se vê como uma figura da vida cultural e artística luxemburguesa?

Não!

Mas as suas obras vão torná-lo imortal…

Ohhh, não! (gargalhada)

Mas vão!

(A gargalhada pára de repente) Não me aquece nem me arrefece! Olhem, se vos interessa tenho também duas ilhas à venda.

A sério, onde?

Ao largo da Patagónia, a Isla Toro e a Isla Mutri, pertencem ao Chile. Comprei-as em 1986.

Por quanto as vende?

Um milhão de euros uma, e oitocentos mil euros a outra. Dou uma comissão de 10% se vocês as venderem...

Quer que publiquemos um anúncio no Contacto?

Só precisam de passar um cheque (risos).

Diz que é um mercenário e não um artista. Então o que faria se não precisasse de ganhar dinheiro. Faria mesmo assim raposas e peças de arte ligadas ao folclore?

Essa é uma pergunta que vale um milhão… Não sei!

Nos anos 1980 fez “Pëckvillecher” para a festa do Eemaischen...

Sim, fiz os primeiros pássaros em barro com a gama completa das notas musicais. Mas depois roubaram-me a ideia. Mas nesse primeiro ano foi um sucesso. Vendi cada peça a 100 e 200 francos (entre 2,5 e 5 euros actuais). Voltei para casa com dois sacos do lixo cheios de dinheiro.

Fotos: J.L. Correia/ Milda Palilionyte

A inspiração para as suas obras é sempre o folclore luxemburguês?

Sim, sou  um ’folclorista’. Os luxemburgueses precisam do seu folclore, sobretudo agora que há tantos estrangeiros no país.

Pensa que é um problema?

Não! Mas se nunca houve problemas porque há agora? Quando eu era jovem havia franceses, polacos, italianos e ainda bem porque trouxeram com eles outros pratos, a cozinha daqui era muito limitada (risos). Depois vieram outros, como os portugueses. Vivia-se muito bem no Luxemburgo. Se sempre funcionou porque não funciona agora? É uma questão que me ultrapassa... Mas, por enquanto ainda se vive bem aqui.

Por falar em folclore, agora estou também a preparar um livro com contos, alguns escritos por mim, outros ilustrados por mim. Por exemplo, o Capuchinho Vermelho, mas 20 anos depois, ou baseados em contos luxemburgueses, como a fada Melusina, ou na história do Luxemburgo, como a vida do conde Siegfried (séc. X).

A escrita é algo novo para si...

Sim. Mas não sei, se não der um livro, posso sempre fazer uma exposição.

Na sua última exposição “Métamorphoses” (patente na Galeria Zidoun-Bossuyt em julho, no Grund) explora o medo do mundo pós-apocalítico, da fome e do fim (em francês, trocadilho entre ’faim’ e ’fin’). Em jovem, as suas obras eram mais alegres, esta visão pessimista deve-se à sua idade?

Não se trata de ser pessimista ou otimista. É uma realidade que conheci bem na América do Sul, a urgência ecológica. Os primeiros desenhos estão datados de 1975, outros de 2016, porque retomei agora uma ideia dessa altura. Foi aí que tive pela primeira vez a consciência ecológica, já começava a ver os primeiros sinais do que é a realidade atual. Hoje consumimos mais do que o nosso planeta consegue produzir, é insustentável, estamos a destruir o globo. O caos e a autodestruição estão programados. Nós, aqui no Luxemburgo ainda não sentimos tanto, porque estamos no olho do ciclone.

Se o mundo vai acabar, para quem está a escrever este livro?

Para mim, gosto de criar, o prazer está no fazer, não no antes nem do depois.

Não pensa na posteridade?

Não vai haver posteridade... Os desenhos dessa exposição vão servir também para um outro livro que estou a escrever sobre o que vai haver depois do fim do mundo, sobre o facto de o homem ter mexido no seu ADN, na genética, o surgimento da inteligência artificial.

Fotos: J.L. Correia/ Milda Palilionyte

Nos peixes “mecanizados” desta exposição notam-se influências astecas...

Sim, é possível, e mesmo nas minhas recentes Melusinas há com certeza inspirações maias e sul-americanas.

Quanto tempo passa no Chile?

Mais ou menos seis meses por ano. Mas é cada vez mais difícil viver lá. É difícil viver como um rico quando todos os outros são extremamente pobres.

Em janeiro foi ferido à navalhada no Chile. A imprensa luxemburguesa chegou a noticiar que tinha morrido. Quer contar o que aconteceu?

Quase morri, sim. Isso assustou-me. Tudo aconteceu em circunstâncias ligadas a idiotices misturadas com alcoolismo e droga, e coisas assim...

Porque decidiu viver metade do ano aqui e a outra na América do Sul?

Aqui o clima... o clima do Luxemburgo é para os luxemburgueses e para os javalis (risos). Mas no Luxemburgo a vida é mais tranquila, voltar aqui é sempre um sossego...

Quer dizer que no Chile é mais ativo, mais criativo?

Sim, faço uma série de atividades por lá, fiz uma Academia de Verão para os pescadores e outras iniciativas...

Porque não faz isso aqui?

Aqui? Há formas mais simples e eficazes de arranjar dinheiro (risos).

Sente-se em casa aqui ou no Chile?

(em alemão) ’Wo es mir gut geht, ist mein Heimatland!’ (O meu país é onde me sinto bem).

Quando está lá sente a necessidade de falar luxemburguês?

Não!

Pensa em que língua?

Em francês!

Fotos: J.L. Correia/ Milda Palilionyte

Volta regularmente a Itália?

Já há muito que não vou. Quando mandar fazer as minhas raposas em bronze vou lá, a Pietra Santa. A Itália é onde está uma parte do meu coração, vir de um sítio como a bacia mineira e chegar a Itália, é como ir para um outro planeta. A Itália é o país mais criativo da Europa, a cultura, a gastronomia... Com quase nada fazem-te um prato extraordinário.

Viaja muito, sente-se um cidadão do mundo?

Sim. Mas também gosto de estar aqui, gosto dos luxemburgueses, senão não voltaria. E é aqui que arranjo o dinheiro para fazer o que gosto (risos).

Tem alguém para lhe suceder nas suas pisadas? A sua filha?

Oh, as crianças já são um tal milagre... A vida pertence-lhe a ela, não lhe vou dizer: faz isto ou faz aquilo. Ela desenha, mas não quer expor.

E a sua mulher, a mãe da sua filha, também é artista?

Oh, já não estou com a mãe dela há muito tempo. Foi numa noite de primavera há muito tempo... Conhecemo-nos nas belas-artes, em Paris. É inglesa, Jean Swanson, hoje vive em Inglaterra. Sim, é artista e ainda faz desenhos e vitrais. De vez em quando, vemo-nos ainda.

Nas suas viagens pelo mundo, encontrou Melusina?

Em todos os portos do mundo há muitas (risos). 

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