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Motim literário Zenith-George: último episódio
Opinião Cultura 13 min. 24.02.2023
Polémica

Motim literário Zenith-George: último episódio

Estátua de Fernando Pessoa no Café A Brasileira, na Rua Garrett, em Lisboa.
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Estátua de Fernando Pessoa no Café A Brasileira, na Rua Garrett, em Lisboa.
Foto: LUSA
Opinião Cultura 13 min. 24.02.2023
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Motim literário Zenith-George: último episódio

Diogo RAMADA CURTO
Diogo RAMADA CURTO
A virgindade sem provas de Pessoa, sugerida por Zenith, é tão provável quanto a ideia de que ele seria um frequentador de casas de prostituição.

Nos motins de pluma, dizia o Padre Lagosta, o feitiço volta-se quase sempre contra o feiticeiro. O acusador, qual espelho de virtudes e qualidades, acaba por se transformar numa mosca varejeira que, de tanto rondar o cachaço do opositor, é inevitavelmente apanhada com uma palmada seca. Assim vão os motins. Este, de que escrevo mais um episódio, contrapondo o Zenith ao George, a respeito do modo de contar a vida de Fernando Pessoa, não é excepção.

George, para que não haja dúvidas, enfiou o barrete e citou trechos de três cartas imaginadas de Fernando Pessoa para Mário de Sá-Carneiro. Com base apenas nisso, caiu o Carmo e a Trindade e esse pequeno lapso teve, imagine-se!, honras de primeira página no maior jornal de referência, o Expresso.

Pretenderam queimá-lo em praça pública e acusá-lo até de plágio. A coisa deu em nada. É de todos sabido que a maioria dessas cartas desapareceu do quarto onde Mário de Sá-Carneiro se suicidou. Por isso, o erro, para o qual lhe tinham já chamado a atenção, foi pelo próprio George denunciado, com lhaneza e sinceridade, como algo de lamentável, a corrigir em segunda edição do seu cartapácio. Pouco importa, agora, ir remexer no modo como lhe tinham sido feitas as perguntas. Aquilo mais parecia um processo inquisitorial, montado numa delação, que só poderia ter sido engendrada pelo próprio Zenith, pois quem lhe fez directamente as perguntas nem sequer se dera ao trabalho de ler as duas biografias de Pessoa que Zenith e George escreveram.

Com essa acusação-denúncia ficou posto o problema de saber até que ponto uma biografia como a de Pessoa pode conter em si passagens, interpretações ou mesmo juízos de valor que são mais o produto da imaginação, da ficção ou da própria construção literária. Uma biografia, concordo, deve basear-se em factos e apresentar as fontes em que se baseia como sucede em qualquer história. Claro que, em muitos casos, os factos são compostos por múltiplas dimensões e, quanto mais compósitos são, mais interferem neles as interpretações. A ponto de se poder dizer que os factos, que transcendem as simples formulações nominais ou cronológicas, mobilizam interpretações e valores. Mais: em qualquer exercício biográfico, como em qualquer modo de escrever história, é muitas vezes difícil distinguir entre os factos e a ficção. O historiador norte-americano Jack H. Hexter, ainda antes de Paul Ricoeur, explicou bem o essencial do que havia a dizer sobre o assunto. Por isso, não vou alardear erudição escusada sobre a matéria.


Motim Literário: Zenith contra George
Afinal, "os ensaios luminosos" de Bréchon sempre serviram de inspiração a Zenith. Será isto um plágio? Segundo o método de Zenith, que atira pedras sem cuidar dos seus telhados de vidro, creio que sim.

O que me importa, por agora, é discutir uma das patranhas que o Zenith, feito almocreve das petas – na linguagem dos contemporâneos do Padre Lagosta – procura impingir na sua biografia. Deduz o autor em causa, “a partir das suas [do Pessoa] notas pessoais, que quase de certeza morreu virgem” (Pessoa. Uma Biografia, Quetzal, 2022, p. 31). E, numa outra passagem, Zenith reitera a afirmação, especificando, sem margem para dúvidas, que “Fernando Pessoa, que acabara de fazer vinte e oito anos, permanecia virgem” (p. 586). O que está em causa é mesmo esta patranha, a peta com valor de tese, só comparável à da homossexualidade de Pessoa: a virgindade do poeta.

Discuto noutro lugar a questão da suposta homossexualidade de Pessoa e sei bem – embora o autor não indique aqui a fonte – onde o poeta escreveu acerca do seu desinteresse pela vida sexual. Foi numa carta para João Gaspar Simões, na qual defendeu que a sua obra poética dificilmente pode ser submetida a uma grelha de análise freudiana, primeiro, porque se tratava de uma construção literária, depois, porque ele próprio não se deixava influenciar pela sua vida sexual sobre a qual não tinha grande interesse. Ora, não seria esta mesma carta uma construção do mesmo género, que dificilmente pode ser tomada como um espelho da realidade ou dos factos, tal como realmente se passaram? É que um leitor dos textos de Pessoa tem obrigação de perceber a permanente ambiguidade entre realidade e fantasia.

Já no caso do Zenith – vá-se lá saber por que razão – , a virgindade sem provas de Pessoa só pode ser tida como um modo de fazer não a sua biografia, mas de entrar no reino da pura fantasia. Onde estão as tais “notas pessoais” onde Pessoa nos esclarece acerca da sua virgindade? Em nenhum lado. E o que existe não dá sequer para uma conjectura dentro de um quadro de probabilidades.

Sobre a vida sexual de escritores e artistas da época, há um exemplo raro e bem boçal, mas muito sugestivo. Em 1936, ano subsequente à morte de Pessoa, o pintor Eduardo Malta contou a história de um grupo lisboeta de jovens escritores e artistas que, no pico de uma noite de boémia, foi a uma casa de putas. Todos satisfizeram a sua pulsão. Só o sétimo dos homens não quis e ficou à conversa com a jovem prostituta. O romance intitulado No mundo dos homens, com propósitos moralizantes, mas com algumas perspectivas etnográficas, centrado na vida de Rui Meireles, que fugiu à regra e permaneceu virgem, termina com o mesmo a hesitar entre dois caminhos: o de ir para África ou o de recolher ao seminário. Haveria muito mais a dizer sobre este romance breve, uma novela que fala do mundo machista dos puteiros, muito pouco representado de um ponto de vista literário.

A razão que me leva à sua evocação é apenas esta: a virgindade sem provas de Pessoa é – mesmo reconhecendo que historiadores e biógrafos são sempre guiados pela curiosidade e pela imaginação – tão provável ou improvável quanto a ideia de que ele seria um frequentador de bordéis. Não há provas factuais, nem notas de espécie alguma que o demonstrem, logo, a margem para a especulação, por parte do biógrafo, é reduzida ou mesmo inexistente. 

Há um outro aspecto, no livro de Zenith, onde este volta a escorregar nas rampas da interpretação fantasiosa, desligando-se da realidade dos factos. Trata-se do antissemitismo de Pessoa que Zenith parece querer pôr na gaveta.  

Parto de três ideias de Zenith. (i) “Qual foi, então, o sentimento visceral de Pessoa em relação aos judeus? Não é de todo claro que tenha tido algum”; e, acrescenta, “desprovido de qualquer animosidade perceptível em relação a eles e escrevendo como um analista sereno (...), observou que os trezentos membros da oligarquia que supostamente planeava derrubar a ordem mundial não eram todos judeus” (op. cit., p. 700). (ii) a afirmação de que “Pessoa ficou a saber tudo sobre essa “questão” [judaica] por via de Mário Saa” (op. cit., p. 701). (iii) o modo como Pessoa julgava os judeus uma raça pura e inferior. A este último respeito, Zenith exprime-se tortuosamente, argumentando o seguinte: “ainda que esta e outras declarações de Pessoa possam ser entendidas como antissemitas, provavelmente ele não o era ‘quanto a temperamento’ e seguramente não o era de forma visceral, nunca de modo a querer defender sequer minimamente uma limpeza étnica” (op. cit., p. 702).

Na formulação destas ideias, mais do que discutíveis, Zenith baseia-se nos trabalhos de Yvette K. Centeno, a que deveria ter acrescentado, da mesma investigadora, a edição do fragmento de Fernando Pessoa, Juden und Freimaurerei (Leipziger Literaturverlag, 2009). Não me irei interrogar aqui sobre as razões – talvez pessoais ou familiares – que estão na base de uma tal dissimulação. No entanto, quem como Zenith foi tão perentório a acusar Pessoa de racismo, de pactuar com o colonialismo e de menosprezar as formas de trabalho forçado, por que razão defende igualmente um ponto de vista tão dubitativo em relação ao antissemitismo de Pessoa? Não será esta uma maneira de pôr o antissemitismo na gaveta, para inglês ver?

Última consideração. Zenith, tal como Pessoa no seu tempo, está inserido num campo intelectual, num mercado em que concorre com outros escritores, editores, jornalistas, investigadores, etc. Conforme já aqui defendi, a sua biografia de Pessoa revela uma incapacidade para delimitar o contexto de pertinência em que Pessoa trabalhou. O grupo ou, talvez seja melhor dizer, os grupos em que se inseriu, pelo menos, desde a criação do Orpheu em 1915, não lhe merecem a atenção necessária e bastaria comparar a este respeito Zenith com George, para perceber uma outra maneira de reconstituir o referido contexto. A título de exemplo, leia-se esta passagem, onde George contextualiza o aparecimento da revista Orpheu, pois nada de equivalente a este exercício se encontra em Zenith:

"Em Portugal, à semelhança do que se passava nos campos político e social, o meio cultural era um espaço de filiações extremadas e antagónicas, que por vezes resultavam em conflitos e lutas entre pares. Naquele tempo de grandes clivagens e de enorme virulência política e social, o ambiente favorecia as manifestações subversivas, os gestos de provocação e as expressões transgressoras, e explica que certas facções da elite cultural se tivessem radicalizado (a retórica do meio artístico começava já a encorajar as posições e os comportamentos desviantes, orgulhosamente críticos das fórmulas estabelecidas). Quase sempre com este intuito: provocar agitação e conquistar o poder (antes de entrarem na sua fase conservadora, depois de consolidada a sua posição no meio artístico, literário e intelectual).

               “As revistas desempenhavam um papel destacado e estruturante, funcionavam como pequenos observatórios da situação do meio cultural: era através delas, em grande medida, que as posições se definiam, que se apontavam os inimigos e se identificavam os aliados (e, sobretudo, que se adquiria reconhecimento social e legitimidade artística).

               “Mas o prestígio e o impulso extraordinário que as revistas literárias adquiriram naqueles anos — um período de revolução na cultura visual, em que a imagem assumia cada vez mais valor e proeminência — devia-se também à afirmação do grafismo como segmento específico da actividade artística, dotado de singularidade e de autonomia (só em 1914 foram criadas seis novas revistas – A Renascença, Alma Nova, A Boémia, A Galera, A Labareda e A Nação Portuguesa – e, no ano seguinte, 1915, mais cinco, Ideia Nacional, Início, Atlântida, Eh Real! e Orpheu).

               “Tal não teria sido possível, provavelmente, sem o desenvolvimento das técnicas de impressão e dos processos litográficos, graças à electrificação das oficinas tipográficas (que veio substituir os motores a gás) e à introdução de máquinas industriais (sobretudo as rotativas, que aumentaram consideravelmente a velocidade de impressão).

               “Por um lado, esta mecanização da composição gráfica permitiu o uso (em larga escala) das imagens na propaganda — no contexto da I Grande Guerra, o novo regime republicano, tal como os outros países envolvidos no conflito, recorreu amplamente à comunicação visual para inculcar ideias, acrescentar eficácia à retórica e justificar medidas políticas — e na publicidade, que se traduziu na criação das primeiras agências de publicidade e na proliferação de cartazes, painéis, tabuletas e outros suportes ilustrados para divulgação de produtos comerciais, de espectáculos ou filmes.

               “Por outro lado, suscitou uma reacção elitista contra a maré homogeneizadora e massificadora dos processos industriais de reprodução mecânica, que se consubstanciou num fortalecimento dos movimentos defensores de uma estética radical da originalidade artística (vejam-se o futurismo e as suas experimentações tipográficas)” (George, O Super-Camões, Dom Quixote, 2022, pp. 390-391).

A incapacidade de Zenith em perceber a época e o mercado intelectual, para além dos grandes quadros políticos, talvez explique a dificuldade do próprio em trabalhar colectivamente com outros investigadores, igualmente habilitados, ou talvez bem mais credenciados, na área dos estudos pessoanos.

O jornalista Luís Miguel Queirós, num artigo do Público publicado há mais de uma dúzia de anos (12-3-2010), revelou as queixas de Teresa Sobral Cunha e Jerónimo Pizarro contra Richard Zenith. Em causa estavam as diferentes edições do Livro do Desassossego. Pizarro considerou as primeiras edições de Zenith “muito fracas” e deu a entender que se baseavam em critérios atrabiliários. Enquanto Sobral Cunha acusou Zenith de, na tradução inglesa de 1991 do mesmo livro de Pessoa, ter incorporado, “sem o assumir”, partes “da edição que ela própria publicara meses antes na Presença”.

Mais tarde, sempre segundo Queirós, quando Zenith publicou a sua primeira edição na Assírio & Alvim, em 1998, Sobral Cunha acusou-o de ter utilizado, “novamente desconsiderando direitos intelectuais”, as correcções que esta fizera para a edição da Relógio d'Agua de 1997.


Fernando Pessoa no epicentro de uma guerra literária
Para rastrear as fontes de Zenith e dar o seu a seu dono, seriam precisas mais de mil páginas. A polémica lançada pelo Contacto continua.

Talvez por causa disso se constate, na biografia de Zenith, uma total ausência de referências ao trabalho de Teresa Sobral Cunha, tirando uma nota solitária, com o nome da investigadora cuidadosamente ocultado sob o véu da obscuridade, lá nos confins das letras miudinhas (como nos contratos de seguros), no final do livro (e, ainda por cima, acompanhada de uma farpa bem mesquinha):  “O artigo de Pessoa foi publicado pela primeira vez em Sobral Cunha e João Rui de Sousa, Fernando Pessoa: O último ano, 121–22, com uma nota a dar conta de que os censores haviam proibido a sua publicação no DL. Tudo leva a crer que essa informação seja verdadeira, mas não consegui encontrar nenhum documento que o prove de forma conclusiva” (op. cit., p. 1140). E a isto se resume, segundo o novo dono de Pessoa, toda uma vida de trabalho de uma das primeiras mulheres a trabalhar a obra do poeta...

Enfim, Luís Miguel Queirós escreveu uma peça importante e equilibrada de jornalismo cultural, expôs os pontos de vista daqueles e de outros intervenientes e respeitou o direito do contraditório. Embora se possa acrescentar que Zenith não se saiu bem da refrega, porque parece ter andado sempre nos calcanhares dos outros investigadores. Tomara que o motim literário entre Zenith e George tivesse partido de um artigo do mesmo género. A ser assim, ter-me-ia escusado a dar tanta palmada nas moscas varejeiras que pousaram no meu cachaço...

(Autor escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.)

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