Dentro do mundo secreto da Guerra dos Tronos
Dentro do mundo secreto da Guerra dos Tronos
A ocidente do denominado Mundo Conhecido, separado pelo Mar Estreito, fica Westeros, um continente imaginário, com a imaginária extensão da América do Sul e as reminiscências da Europa medieval. O território, que no seu extremo Norte tem uma "intransponível" muralha com 200 metros de altura, feita de pedra e de gelo, que se estende por mais de 500 quilómetros, protege Westeros das forças negras do desconhecido, além. Os Sete Reinos governam Westeros. King's Landing (Porto Real) é a sua capital, onde fica o Trono de Ferro. O tempo é diferente. As estações duram anos, décadas, o mais longo dos invernos. O poder é dinástico. A paz, instável. A política é um jogo mortífero, de intrigas, de cobiça, de pactos e de traições.
Sendo indeterminado o seu tempo histórico, uma estranha realidade tem a ficção da Guerra dos Tronos, onde a natureza humana se debate consigo própria, cercada pelas suas elaborações mitológicas. O dragão é a mais temível das armas, o arquétipo da invencibilidade, da conquista. O medo é a mais antiga das fragilidades e o homem o pior inimigo da Humanidade.
A luta pelo poder é o sangue da Guerra dos Tronos, uma das séries mais vistas de sempre, mais caras de sempre, assim como mais lucrativas de sempre. É a galinha dos ovos de ouro da HBO, transmitida em 170 países, com uma máquina de marketing global, uma multiplicadora de spin-offs e uma legião de fãs incondicionais à escala planetária.
Banbridge é uma pequena cidade na Irlanda do Norte, no condado de Down. Não fica muito distante de Belfast, mas é como se ficasse num mundo perdido, sitiada por todos os quadrantes de um imenso horizonte verde, com mais ovelhas do que habitantes. Chama-se assim porque tem uma ponte sobre o rio Bann, por onde passavam os viajantes entre Dublin, capital da República da Irlanda, e Belfast, capital da Irlanda do Norte.
Banbridge cresceu dessa rota, crescendo de apeadeiro para cidade. Não ficou imune às históricas convulsões políticas irlandesas. Em Banbridge explodiram três bombas do IRA (Irish Republican Army) durante as três décadas (1968/ 1998) mais sangrentas de um conflito ancestral entre Católicos e Protestantes, que ficaria para a história das Irlandas como "The Troubles", que definiu o estatuto político da Irlanda do Norte que, após a independência da República da Irlanda (1922), se manteve no Reino Unido. Uma ferida que amenizou, mas que está longe de sarada.
Na sua orgulhosa ruralidade, Banbridge teve um papel importante na indústria têxtil irlandesa (produção de linho), que desvaneceu no tempo. A sua população ultrapassa em pouco os 16 mil habitantes, sendo 62% destes protestantes. Esta cidade está demasiado longe de Belfast para ser um subúrbio e demasiado próxima para não ser. É como se guardasse a identidade híbrida de uma cidade que vive no campo. Foi exactamente aqui que se uniram dois mundos: este e o da Guerra dos Tronos.
Uma série de lucros
Em Banbridge – onde um dia nasceu mister John Butler Yeats, pai de William Butler Yeats, o primeiro dos quatro prémios Nobel da Literatura que a Irlanda deu ao mundo -, em Fevereiro do ano passado foi inaugurado o único museu do mundo da Guerra dos Tronos. Uma espécie de santuário interactivo para os fãs da série, que começa a transformar o turismo e a economia local, com os visitantes que ali chegam ininterruptamente de toda a parte do mundo.
Para assinalar o impacto que a Guerra dos Tronos tem no PIB nacional, esteve presente na inauguração o próprio ministro da Economia da Irlanda do Norte, Gordon Lyons, que não escondeu o orgulho de ter no país um museu único no mundo, tornando a pequena cidade de Banbridge num lugar incontornável no universo da Guerra dos Tronos. Ele próprio fez a apresentação pública deste espaço.
Neste museu, disse então, encontram-se "alguns dos cenários mais impressionantes, vestuários complexos das personagens da série, adereços criativos e desenhos de tirar o fôlego". Gordon Lyons manifestava a esperança que o museu fizesse por Banbridge o que a Guerra dos Tronos tinha feito pela economia da Irlanda do Norte, onde decorreram grande parte das filmagens de mais do que uma temporada da Guerra dos Tronos, que saltitou por muitos lugares da Europa e do mundo, a começar pela vizinha República da Irlanda, passando pela Croácia, Espanha, Islândia, Canadá e Estados Unidos da América. Portugal integrou mais tarde este mapa, tendo sido anfitrião, junto com a cidade de Cáceres (Extremadura espanhola), das filmagens da prequela da série.
Mas foi em Banbridge que se instalou o mega-estúdio, hoje museu, onde se filmaram as cenas mais importantes das oito temporadas da série (actualmente já são nove), assim como todo o incrível processo criativo que está na sombra do seu sucesso, ao qual raramente o público em geral tem privilégios de acesso.
A Guerra dos Tronos representou para a Irlanda do Norte, através da North Ireland Screen (entidade que apoia o audiovisual), um investimento que pouco ultrapassou os 15 milhões de euros. O retorno, justificou por inteiro esse investimento, que acabou por tornar-se numa gota de água num oceano de lucro.
De acordo com o próprio governo da Irlanda do Norte, entre as avultadas somas recebidas para as filmagens no país e as receitas geradas directamente pela Guerra dos Tronos no sector do Turismo, os lucros ascenderam a mais de 300 milhões de libras (moeda do Reino Unido).
Em Banbridge ficou uma mina de ouro. Os pormenores sobre os bastidores desta série da HBO são geralmente escondidos, com segurança própria de um segredo de Estado e sofisticadíssimos dispositivos anti-paparazzi. Neste estúdio-museu, estão expostos e desconstruídos muitos desses segredos. É por isso que Banbridge todos os dias recebe centenas de visitantes, com bilhete marcado para o interior da Guerra dos Tronos.
É também por isso que os bilhetes não são propriamente uma pechincha para as bolsas dos fãs portugueses da série. O Game of Thrones Studio Tour é uma verdadeira viagem ao coração de uma produção com a dimensão desta, que conta já com 38 Emmys na bagagem. Até à estreia da Guerra dos Tronos, em 2011, a série mais vista da HBO, que parecia virtualmente imbatível, era os Sopranos, com 20 milhões de espectadores.
Para se ter uma noção da dimensão que alcançou a Guerra dos Tronos, basta consultar as estatísticas da própria HBO: na sexta temporada desta série, que é a adaptação televisiva de "Songs of Ice and Fire", contos épicos do escritor norte-americano George Raymond Richard Martin, hoje um multimilionário, a Guerra dos Tronos tinha já uma audiência média de cerca de 26 milhões de espectadores, nas diferentes plataformas que a HBO disponibiliza.
Os seis episódios da oitava série atingiram níveis de audiências inimagináveis até para a HBO, pulverizando os seus próprios recordes: cada episódio teve uma média de 43 milhões de espectadores.
Quanto mais a Guerra dos Tronos crescia para um fenómeno televisivo quase sem paralelo, mais aumentavam os seus custos de produção. Nada que preocupasse a HBO, pois os lucros com a série eram astronomicamente maiores. Nas temporadas iniciais da série, a produção de cada um dos episódios da Guerra dos Tronos rondava os 6 milhões de euros. Na sexta temporada, os custos totais dos 10 episódios custaram à HBO perto de 90 milhões de euros.
A oitava temporada, que se julgava a última, tinha seis extensos episódios. Cada um dos episódios era uma espécie de longa-metragem de 'streaming', tendo o custo de cada episódio aumentado exponencialmente para uma média de 15 milhões de euros. No início da série, a HBO lucrava uma média de 17 milhões de euros por episódio, sendo que essa média foi crescendo para 84 milhões por episódio.
Com excepção da prequela "The House of Dragon", que não conta para o rosário do Estúdio da Guerra dos Tronos em Banbridge, e que teve Portugal como anfitrião de algumas filmagens na aldeia de Monsanto (Idanha-a-Nova), as oito temporadas da Guerra dos Tronos (73 episódios, no total), segundo a Rolling Stone, já tinham rendido à HBO uns módicos 3 mil milhões de euros.
O trono do turismo
"An Epic Adventure Awaits. Game of Thrones Tour. Just 5 minutes from here". Para o estúdio da Guerra dos Tronos há um 'shuttle' de 20 em 20 minutos. A paragem fica na zona comercial de Banbridge, que se posiciona em relação à cidade como um subúrbio do consumo, com tudo e mais alguma coisa, incluindo o McDonald's, a única cadeia que ali faz frente à poderosa HBO.
No estúdio da Guerra dos Tronos, que deu emprego a dezenas de jovens de Banbridge, alguns que tinham já participado como figurantes na produção de alguns episódios, os personagens ganham uma estranha vida, como se tivessem escapado do ecrã para ali ficar, na sua intimidade museológica, como se nos fossem apresentados à nascença, numa depuração antropológica em que eles passam de heróis a estátuas e destas a esquisso.
Mesmo que não se seja grande adepto da série, uma heresia dispendiosa, é fascinante observar como do nada se criou um mundo fantástico, entre a realidade e a ficção, cheia de animais ferozes e seres míticos, lutas fraticidas, batalhas épicas contra as forças das trevas, as conspirações de corte, os silenciosos duelos geopolíticos que percorrem as oito temporadas da série, as personagens e as histórias, nas suas múltiplas dimensões.
Parece infinito o trabalho de autêntica filigrana os bastidores da Guerra dos Tronos, onde a imaginação não tem limites. Um verdadeiro exército criativo, sob a liderança de David Benioff e D.B. Weiss – responsáveis pela criação, adaptação e produção da série para a televisão -, trabalhou noite e dia nestes estúdios, desde os desenhos que dariam corpo às mais diversas personagens, nos mais diversos detalhes ornamentais, como por exemplo, o fato do gigante Wun Wun, feito com ossos e conchas de ostras, que é o primeiro com quem nos cruzamos mal se abrem as portas do universo da Guerra dos Tronos.
É como entrar numa cidade dentro de outra, onde nos aguardam os inevitáveis Jon Snow, Cersei Lannister, Daenerys Targaryen, Tyrion e Jaime Lannister, Eddard, Sansa, Arya e Bran Stark, entre centenas de outras personagens, algumas que levaram meses a criar, para ocupar dois segundos de prime time.
Sem grandes pressas, a tour, que pode ser por conta própria ou com um guia, pode levar quatro horas a percorrer a extensa galeria dos personagens que ali se encontram nos seus cenários originais, um longo 'filet mignon' de aprendizagem, que nos faz voar na ficção, trocando-a por miúdos.
A propósito: a faixa etária dos visitantes não é tão jovem quanto se possa pensar. É ampla, mas a maioria tem entre 39 e 47 anos. Os locais de trabalho, assim como os desenhos, as anotações, os storyboards, as maquetas, os planos de caracterização, a parafernália de materiais usados nos efeitos especiais, milhares de adereços, desde as roupas ao armamento, os incontornáveis dragões, maiores do que os gigantes e, 'nobless oblige', a jóia de todas as coroas: o Trono de Ferro, forjado de espadas, diz-se, pelo bafo de dragões.
O trono é uma espécie de arte final, o último elemento do museu, no cenário original, que tem no chão desenhado o planisfério da imaginação. Branbridge, que aprendeu a navegar à bolina do sucesso da Guerra dos Tronos, já ganhou a sua guerra. A cidade já teve mais visitantes no último ano do que nas últimas duas décadas.
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)
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