Cannes 2015 : O império português contra-ataca
Cannes 2015 : O império português contra-ataca
É impossível ser-se português no festival de Cannes e não falar, ou ouvir falar, do filme de Miguel Gomes “As mil e uma noites”. Esta trilogia surpreendente não está sequer na competição oficial, participando na Quinzena dos Realizadores, uma secção paralela do festival. Este ano não se pode dizer a ninguém em Cannes “sou português” sem que o interlocutor pergunte: “e então que achaste do filme do Miguel Gomes?”.
À hora que escrevo estas linhas o filme ainda não tinha sido projectado na sua totalidade. Eu explico. Trata-se de uma trilogia, os organizadores da Quinzena dos Realizadores decidiram apresentá-lo em três dias distintos e até agora ainda só foram visualizados os dois primeiros. Os cinemas portugueses vão ter direito ao mesmo sistema de projecções: o primeiro filme sai no final de Junho, o segundo em Julho e a trilogia completa-se em Agosto. No total são mais de seis horas de cinema que Miguel Gomes foi rodando sem saber muito bem o que ia acontecer – como aliás tinha feito com “Meu querido mês de Agosto”.
No site dedicado ao filme, que Miguel Gomes começou a escrever ainda antes de lançar as filmagens, o cineasta explica que “devido à natureza do projecto esta sinopse de filme vai cada vez menos se parecendo com uma sinopse”. “Na realidade, as histórias de Xerazade nesta nossa versão de 1001 Noites baseiam-se em eventos que ainda não tiveram lugar – aqueles que se irão passar em Portugal durante os próximos 12 meses”.
E Gomes continua: “o que se pretende com este filme é fazer duas coisas em simultâneo: 1) retomar o espírito delirantemente ficcional de 1001 Noites e sobretudo reafirmar com ele e através dele o vínculo que une o Rei e Xerazade (a imperiosa necessidade de histórias); e 2) traçar um retrato ou uma crónica de Portugal durante um ano (num momento em que o país está sujeito aos efeitos da “austeridade” criados pelo programa de assistência financeira da Troika). Ficção e retrato social, tapetes voadores e greves. Aparentemente dimensões que não estão ligadas ou pelo menos que nos habituamos a arrumar em diferentes gavetas. Mas imaginário e realidade nunca puderam viver um sem o outro (e Xerazade bem o sabe)”. E o suspense do filme, resume o seu actor com humor, está sobretudo numa coisa: conseguirá Ali Babá sair da caverna antes da chegada dos 40 ladrões? Conseguirá Portugal evitar um segundo resgate financeiro e voltar aos mercados?
Obviamente o projecto era ambicioso, mas Miguel Gomes tem demonstrado que, mesmo com meios reduzidos, olha apenas a fins e consegue, pelo menos parcialmente, obtê-los. A crítica de Cannes teve reacções variadas mas, sem excepção, manifesta admiração pela ambição do português. Contar 1001 histórias da crise em Portugal não era tarefa fácil e, por isso, a vasta recolha de material obrigou os criadores do filme a optarem pelo formato de tríptico para poder conter tanta informação.
A primeira parte, “O inquieto”, confirmou que a vontade de contar histórias não falta a Miguel Gomes, e tal como a maior parte dos grandes nomes do cinema português, este também se libertou desde há muito das amarras dos géneros e das regras clássicas da Sétima Arte para as reinventar nas suas obras. “As mil e uma noites” começam como se estivéssemos perante um documentário sobre os estaleiros de Viana do Castelo, para logo depois descobrirmos as terríveis vespas asiáticas que assustam os minhotos. O filme oscila entre estas histórias, quase-reportagens, e as hesitações do realizador, em falta de inspiração e de soluções para o seu projecto, um pouco à imagem do país que se bate com a crise e as exigências dos seus credores.
A importância de “As mil e uma noites”, quer se goste ou não deste filme tantas vezes burlesco, foi de mostrar em Cannes que o cinema português tem sucessores de Manoel de Oliveira.
E no que respeita ao resto, ou seja, todo o festival e os candidatos à Palma de Ouro? O problema é sempre o mesmo. É extremamente difícil fazer prognósticos a meio do jogo, sem conhecer ainda metade dos intervenientes. A selecção de 2015 é extremamente espiritual, por vezes religiosa. Esta tendência sente-se em alguns dos filmes em competição, na secção Un certain regard e em muitos dos eventos paralelos que abordam cada vez mais essas temáticas.
Na primeira metade do festival, destacam-se dois nomes habitualmente aclamados na Croisette: Nanni Moretti e Todd Haynes, assim como o grego Yorgos Lanthimos, que assina um dos filmes mais estranhos da selecção oficial, e ainda o surpreendente húngaro László Nemes. Registe-se ainda a grande desilusão que chegou pela mão de Gus Van Sant ao assinar um filme que foi pateado e apupado durante a projecção na sala Lumière.
Antes de o festival acabar vamos descobrir Denis Villeneuve, num filme sobre agentes secretos, Paolo Sorrentino a dirigir Michael Caine e Harvey Keitel, Hou Hsiao Hsien a contar uma história da dinastia Tang e uma nova versão de Macbeth com Michael Fassbender. E claro, queremos ver o fim da trilogia de Miguel Gomes. Será que no filme Portugal se safa ou morre na praia como as baleias suicidas?
Raúl Reis, em Cannes
