Um esquecido da história que é uma revelação
Um esquecido da história que é uma revelação
A vida e a obra de Ladislau Batalha (1856-1939) – por mais aventurosas e empolgantes que se afigurem – não têm suscitado grande atenção. No entanto, a sua obra escrita e publicada em livros, folhetins e numerosos artigos de jornal, atravessada por vários relatos de inspiração autobiográfica, conta-se em largas dezenas de volumes e centenas de artigos. Mário António Fernandes de Oliveira chamou a atenção para a sua passagem por Angola, no último quartel do século XIX. Ali colaborou com Alfredo Troni no Jornal de Luanda, onde influenciou outros jovens a enveredar por uma carreira ligada à escrita. Mais recentemente, a publicação de uma antologia de escritos de Mário Domingues com um sentido anticolonial pôs a descoberto o contributo de Ladislau, na década de 1920, para a mesma causa. Por sua vez, há que contar com o valioso estudo de Jacinto Rodrigues sobre os seus romances intitulados Mistérios da Loucura (Dramas de Família), em 4 tomos, e Misérias de Lisboa (Romance de actualidade), em 9 tomos, que foram editados em folhetins, antes de serem reunidos e impressos em livro pela Editora João Romano Torres, entre 1891e 1893.
Apesar da obra de Ladislau Batalha ter sido pontualmente referenciada, sobretudo no que respeita à sua participação em questões coloniais, o certo é que não dispomos de uma visão de conjunto da sua vida, nem tão pouco uma interpretação da totalidade dos seus escritos. Uma primeira fase da sua biografia foi marcada pelas viagens, primeiro para S. Tomé e Angola, depois a uma escala que hoje poderíamos definir como planetária. Essa experiência de vida inspirou várias obras ditas de divulgação sobre África, os referidos folhetins, no primeiro dos quais contou a história de um degredado branco e pobre, e ainda um relato tardio em jeito de autobiografia de uma vida aventurosa e pícara. Porventura mais importante: toda essa experiência africana e colonial levou-o a tomar posições insólitas de crítica ao colonialismo.
Num pequeno panfleto, publicado quando se encontrava já bem estabelecido de volta a Lisboa, apresentado ao Congresso Nacional Operário, e intitulado Serviçaes africanos (Lisboa: Instituto Cooperativa de Produção, 1909), Ladislau expôs de forma sintética as injustiças existentes na exploração da mão-de-obra africana, denunciou o sistema colonial como fazendo parte da engrenagem capitalista e ensaiou um programa de autonomização e de independência para as colónias europeias. Para se pronunciar sobre esse mesmo assunto – no pico da discussão sobre o cacau de S. Tomé e os usos de novas formas de escravatura, na qual se envolveram William Cadbury e os grandes roceiros de S. Tomé – Ladislau contava com a sua experiência inicial, enquanto jovem inspector da Curadoria dos Indígenas daquela ilha. Do embate com um dos roceiros, explorador desenfreado e violento dos trabalhadores africanos, que viviam fora de qualquer quadro legal ou contratual, veio a deixar um relato minucioso em Memórias e aventuras—Reminiscências autobiográficas (Lisboa: Editores J. Rodrigues & C.ª, 1928).
Das viagens que o levaram a realizar quase uma volta ao mundo, também retirou motivação e materiais para escrever três livros, entre 1904 e 1906, respectivamente, sobre o Reino Unido, a Rússia e o Japão. As descrições destes dois últimos países, sobretudo quando lidas em conjunto, afiguram-se praticamente inéditas na cultura portuguesa. Claro que há que contar com a descrição da Rússia de Consiglieri Pedroso, começada a publicar na revista Serões, desde 1903 e que se prolongou até 1909, bem como com as descrições do Japão de Venceslau de Morais. Mas, num panorama cultural onde são escassas as descrições sobre países extra-europeus e outros continentes, o interesse de Ladislau Batalha assume uma enorme importância. Nele se encontra, aliás, uma crítica à ideia generalizada e pouco fundamentada de um “perigo amarelo” que pesaria sobre a Europa e o Ocidente; em sua substituição, o que o autor pretendeu denunciar foi o conjunto dos resultados produzidos por uma sociedade capitalista.
As viagens, descrições e romances ou relatos de aventuras a elas associados representam bem uma perspectiva bem cosmopolita, que reveste aspectos raros na cultura portuguesa. Uma segunda perspectiva, mais ancorada nas lutas políticas portuguesas, não contradiz necessariamente a dimensão anterior. Refiro-me, por um lado, ao envolvimento de Ladislau primeiro nas lutas republicanas contra a monarquia, mas sobretudo e, desde muito cedo, à sua adesão a tendências mais libertárias e anarquistas. É nelas que radicam as suas críticas mais contundentes ao capitalismo, à organização do Estado militarizado e parasitário, bem como ao nacionalismo a que também chamou, de forma depreciativa, “ficção patriótica”.
O radicalismo político de Ladislau Batalha encontrou na denúncia da miséria de operários e trabalhadores rurais um dos seus temas principais. Estes são representados no interior de um processo de cada vez maior degradação salarial, frente à subida do custo de vida. E a política verdadeira, como projecto, só tinha para ele sentido se servisse para a resolução dessa questão primordial. Tudo o que se afastasse desse desígnio seria irrelevante ou uma cedência às classes parasitárias que, a coberto do Estado, apenas reproduziam as suas posições de privilégio e distinção.
Desde os seus primeiros escritos, Ladislau procurou esclarecer o seu posicionamento político e assumiu um conjunto de clivagens. Primeiro, em relação à sua filiação republicana. Depois, em termos de denúncia do capitalismo e do nacionalismo promovido pelos Estados, nomeadamente do ponto de vista do expansionismo militarizado e colonial. É neste quadro que se voltam a encontrar nas suas obras ideias, em boa medida inéditas, acerca da expansão dos portugueses. Esta é, então, caracterizada, na longa duração, como uma empresa de saque e de escravização dos africanos, a qual não podia suscitar nenhum tipo de orgulho.
Porém, entre o seu livro intitulado A Burla capitalista: Critica da Sociedade Contemporanea (Lisboa: Instituto Geral das Artes Gráficas, 1897) e a sua participação no periódico Protesto: semanário socialista, publicado durante um longo período que foi de 1922 a 1935, haverá que investigar as lutas políticas em que o mesmo Ladislau participou. Sobretudo em relação à sua colaboração neste último meio de comunicação, será possível reconstituir o modo como ele fez frente ao emergente autoritarismo fascista.
Do seu último período de labor e publicações, data a pequena novela intitulada Florêncio: romance patológico (Livraria Central de Gomes Carvalho, s.d.). Nela, Florêncio viveu a sua homossexualidade de forma velada, tendo realizado um casamento de conveniência com uma rapariga de classe alta. Na incapacidade de consumar o casamento, Florêncio acabou por pedir à sua mulher para se vestir de rapaz, pois considerava que só assim poderia criar uma ilusão que lhe servisse de motivação. Mas nem assim foi capaz de ter relações sexuais com a mulher, o que o conduziu à necessidade de se divorciar para se libertar de uma vida que era, para ele, um logro. Pode perguntar-se se o livro de Ladislau Batalha representa o diagnóstico certeiro de uma patologia, como à primeira vista se afigura, ou se é muito mais o testemunho de uma certa permissibilidade em relação ao modo de espreitar a vida singular de quem se liberta.
Existem, aliás, fortes indícios que essa permissibilidade é uma hipótese mais provável, porque posta a par das aventuras licenciosas com outras jovens africanas que Ladislau narra em nome pessoal, no citado livro de Memórias e aventuras (1928). Neste sentido, mais do que a denúncia moralizante de qualquer tipo de patologia, o que estava em causa na pequena novela era a necessidade de defender a liberdade de costumes, a começar pelas práticas sexuais.
Se ao viajante na juventude opusermos o professor, jornalista e intelectual de uma idade mais adulta, talvez possamos verificar como é que Ladislau se procurou inserir no campo de outros escritores e publicistas do seu tempo. Por um lado, estabeleceu pontes com outros, mais velhos e seus pares, os quais mobilizou para a escrita de prefácios dos seus livros. Assim sucedeu com Teófilo Braga (que o equiparou, nas suas andanças, a Fernão Mendes Pinto), Miguel Bombarda, Consiglieri Pedroso e Albino Forjaz de Sampaio. Por outro lado, Ladislau também procurou traçar os retratos de outros escritores, poetas e intelectuais, de Teófilo a Gomes Leal – Gomes Leal na Intimidade, pref. de Albino Forjaz de Sampaio (Lisboa: Livraria Peninsular Editora, 1933)
Ao mesmo tempo, Ladislau ensaiou a inserção das suas ideias num sistema filosófico mais vasto, baseado no positivismo, mas com implicações originais – O Negativismo: Viagem aventurosa nas regiões do Ideal, introdução de Miguel Bombarda (Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1908). Ao mesmo tempo que se comprometeu na difusão de conhecimentos práticos e científicos, com uma atitude positiva de mestre e professor – Lições de cousas: Curso geral de vulgarisação scientifica, 2 vols. (Lisboa: Grémio Socialista dos Anjos, 1898).
Em conclusão, estas anotações em torno de Ladislau Batalha dizem respeito a três dimensões principais da sua vida e obra: à sua cultura cosmopolita de viajante; às suas lutas políticas de sentido libertário; e à sua inserção mais intelectual e filosófica. A partir delas poder-se-á chamar a atenção para a necessidade de empreender um estudo aprofundado de Ladislau Batalha. Contudo, fica por esclarecer a razão do abandono a que a sua obra foi votada. Foi por ter sido confundida como mero veículo de interesses comerciais da Romano Torres? Ou foi o seu radicalismo político – com as suas ideias libertárias e anarquistas, às quais não foram alheias algumas ambiguidades e insinuações licenciosas – que depreciou o seu valor, transformando-o num pobre pícaro folclorizado e reduzindo a sua obra a uma espécie de folhetim ou romance de cordel? O certo é que a sua vida e a sua obra nunca foram estudadas.
(Autor escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.)
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